Memórias de Páscoas Camponesas
Jacirene da Silva Queiroz
A Semana Santa é sempre uma data muito especial no calendário anual. Em nosso país, a sexta-feira santa é feriado nacional, e nesse contexto, há diversas maneiras de se aproveitar a folga da labuta diária, seja dos estudos ou do trabalho, cada indivíduo ou família faz de sua folga momentos em que o lazer, o descanso e o ócio é desenvolvido de diversas formas. Há os que gostam de relaxar nas praias, os que preferem colocar as séries e filmes em dias, os que se dedicam aos retiros espirituais, a leituras e aos jejuns e aqueles que como eu, procuram o interior do estado onde residem os parentes e fazem desses dias, dias de reencontros e convivência, claro que regado a muita comida boa.
Desse modo, irei narrar o que tenho vivido desde a infância, nesses dias que antecedem a páscoa. Minha família é de uma comunidade camponesa, de pais e avós agricultores e pescadores. Tenho na lembrança a preparação de pratos que as famílias faziam, inclusive a minha, na finalidade de esperar essa data, especialmente a quinta-feira, sexta-feira e o domingo, o sábado é um assunto a parte, que falarei adiante.
A preparação começava uma semana antes com a colheita da mandioca para fazer a farinha e os beijús, pé-de-moleque, tapioca, bolo de macaxeira, além de pamonha e canjica para os dias santos. A mandioca era colocada de molho para a produção da farinha e da massa puba para o pé-de-moleque. Na segunda-feira, tirava-se a mandioca que seria ralada para o preparo do beiju e a produção de goma, para a tapioca.
Fonte: Autora.

Na terça-feira era dia de tirar a mandioca da água e irmos para a casa de farinha. Ressalta-se que eram dias nos quais se praticava o jejum, realmente, uma penitência. Antes de sairmos de casa, rezava-se o Terço e Ave Maria, a partir daí não era permitido falar ou rir alto, contar piada, falar besteira, não, isso não era permitido. Além de termos que trabalhar com fome, ao menos até a hora do almoço.
Como eu sempre gostei de comer, a parte do jejum era uma verdadeira penitência para mim, eu reclamava bastante por não tomar o café da manhã e nem lanchar. Porém, havia a esperança que estávamos a trabalhar com o objetivo de fazer comida que nem sempre estavam presentes em nossa mesa. Era época de milho verde, de verdade, para mim, uma das melhores épocas do calendário agrícola. Era uma cultura que eu amava plantar, pois tudo o que é de milho, eu gosto.
Então, na terça-feira a gente passava o dia no retiro a prepara a farinha d’água e depois, o beiju (massa de mandioca ralada e lavada, espremida no tipiti e coada na peneira de tala de guarimã, depois mistura-se o coco ralado e o sal. Em seguida, a massa é espalhada sobre a folha de bananeira e lavada ao forno quente para assar até ficar douradinho.
O pé-de-moleque é feito de massa puba lavada e espremida, e nela é misturada uma calda de açúcar, o coco ralado, a manteiga e as especiarias (cravinho, erva doce, canela em pó), mistura-se bem, essa massa é posta em folha de bananeira e levada ao forno para assar, quando fica dourado de um lado, vira-se para dourar o outro e está pronto.
Nesse dia eram feitas as tapiocas, cuja goma era misturada com coco ralado e sal, posta sobre a folha de bananeira e assadas até dourarem, no forno de farinha. É necessário ter o conhecimento relativo a temperatura do forno, que não poderia está nem tão quente e tão pouco frio, para não queimar ou deixar de assar os beijus, pé-de-moleque e tapiocas.
É importante destacar que esses preparos eram realizados por diversas mulheres, fossem mães, filhas, cunhadas, avós, sobrinhas, vizinhas, amigas, era um momento de sociabilidade e socialização tão singular que eu sou fruto desse processo. Comecei o aprendizado desses quitutes descritos, nesses momentos de partilha.
Na quarta-feira, eram preparados os produtos do milho verde: mingau, pamonha, canjica, milho assado e cozido. Essa era parte que eu mais gostava. Lembro que minha mãe se reunia com a vó Josefa, que era sua sogra e a quem ela chamava de madrinha, para o preparo dos derivados do milho. As crianças, como eu, ajudavam a tirar a palha e o cabelo do milho, às vezes, minhas tias também participavam.
Depois, o milho era ralado e dividido a massa para os produtos pretendido. Essa produção ocorria sempre pela parte da tarde, o que era muito bacana, pois já podíamos comer milho assado, cozido e raspar a panela da canjica, era tão disputada essa panela.... ao final era uma festa, todos com a colher na mão raspando o fundo grudadinho dela.
O tempo passou, meu pai tornou-se funcionário público e a nossa vida tomou outro rumo, casei com um homem, cuja parte da família é toda do interior de Bonito, próximo a Capanema, uma comunidade camponesa, lá se repete essas práticas que antecedem a sexta-feira santa, o jejum de carne vermelha é praticado por alguns durante a quaresma, outros evitam o consumo desta na semana santa. Na sexta-feira, é impreterível o consumo de peixe por quem professa a fé católica. Já tem uns anos, que a família de meu marido não faz o jejum (ausência de alimentos) na semana santa, como era costume dos antigos.
A tradição de preparar as comidas derivadas do milho e da mandioca, cozinhar pupunha até quarta-feira é praticado. Na quinta e sexta-feira santa, as famílias não trabalham em nada, apenas guardam os dias, não é permitido jogar, promover ou participar de festas, beber bebida alcoólica, desentendimentos. Os dias são para visitarem os familiares e conhecidos e dividir que foi preparado. É a manifestação da dádiva e da reciprocidade de maneira linda, que só em sociedades, cujas bases não estão totalmente fundadas no capital, promove e entende.

Fonte: Autora.
Nesse ano, participei do preparo da canjica, feita com 60 espigas de milho, rendeu muitos pratos que foram distribuídos entre os familiares e vizinhos. A nossa tia Didi, proprietária da casa onde foi preparada a canjica, disse-nos: “quem chegar e quiser, vai levar canjica”. Outra tia, chamada Célia fez pé-de-moleque e mandou, juntamente com milho verde e pupunha para o nosso café dos dias santos. A gente nem sabe como retribuir tamanha gentileza.
Em relação ao sábado de aleluia, era um dia bem peculiar a começar pela apreensão que as famílias tinham em relação a malhação do Judas, pois na década de 70, 80 na comunidade onde nasci, era possível algum “engraçadinho” usar o Judas para manchar a honra das famílias que tinham filhas moças. Isso aconteceu na família de minha mãe e foi uma situação bem complicada para minhas tias.
Era também, o sábado de aleluia dia de prestação de contas das transgressões realizadas nos dias santos, nos quais, não era permitido aos pais qualquer ato corretivo, isso era guardado para o bendito sábado. Ah!... e você podia esperar, a correção viria. Sem esses contratempos, a semana santa era e é, um momento para reflexão. Um tempo para olharmos a nós mesmos e
resignificarmos o nosso pensamento e sentimento. Renascer, sempre que preciso for e olhar o próximo com amor, compaixão e tolerância.
Para o cristão é momento de partilha, de compartilhar a mesa, de servir a ceia, de olhar os desvalidos e dividi o pão, conforme fez Jesus e cumprir o que Ele mandou “fazei isso em memória de mim”. Talvez por isso, em comunidades camponesas a dádiva e a reciprocidade sejam executadas de forma tão singular, na oferta dos preparos daquilo que a terra dá, não de produtos mercadológicos, sem um sentido real. Nessas sociedades, além dos presentes, o estar presente, manifestado pelas visitas e pela lembrança em receber um prato de canjica, cachos de pupunhas, beijus, pamonhas, tapiocas, convite para um café ou almoço, seja o verdadeiro sentido da Páscoa.
De coração, eu desejo Feliz Páscoa, com a alegria de Jesus Cristo, O Cordeiro de Deus, e os valores humanos de uma comunidade camponesa.
Bonito, 19 de abril de 2025
Jacirene da Silva Queiroz.